Detergente e polímero naturais matam bactérias sem agredir o ambiente
A resistência de bactérias a antibióticos e outros agentes antimicrobianos é um dos principais desafios de saúde pública em todo o mundo – depois, claro, da emergência com a Covid 19.
Estimativas para 2050 apontam mais de 10 milhões de mortes por ano causadas por bactérias resistentes. Neste cenário, nanomateriais aparecem como grande esperança, devido a características físicas e químicas únicas.
No entanto, a maior parte das nanopartículas com fins bactericidas têm metais em sua composição, que podem se acumular no organismo humano, ou usam surfactantes de origem sintética, majoritariamente derivados de petróleo. Esses materiais podem causar danos ao ambiente e, também, acarretar altos custos de produção.
Em busca de alternativas, o Grupo de Biotecnologia Microbiana do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da Universidade de São Paulo (USP) pesquisa há mais de 10 anos surfactantes de origem biológica, os biossurfactantes. Uma parceria com o Grupo de Bioquímica e Biomateriais do IQSC acaba de resultar em nanopartículas que combinam um desses biossurfactantes, um ramnolipídio, a um polímero também de origem natural, a quitosana.
Os resultados obtidos são superiores a cada um dos materiais usado isoladamente no combate a bactérias do gênero Staphylococcus, frequentemente envolvidas em infecções hospitalares resistentes a antibióticos.
“Como ambas as moléculas apresentam ação antimicrobiana frente a patógenos de interesse, como o Staphylococcus aureus, pensamos em combiná-las visando aumentar a atividade e fornecer uma nova alternativa no controle de patógenos”, explica Marcia Nitschke, docente do IQSC e uma das coordenadoras da pesquisa. Ela destaca também que uma das características importantes das nanopartículas é a maior área de superfície em relação ao volume, o que aumenta a área de interação com a célula bacteriana.
Surfactantes são uma classe de compostos químicos muito utilizados em vários setores industriais e, principalmente, como matéria-prima dos detergentes domésticos. A palavra deriva do fato de ser um agente de atividade superficial (em inglês, “surface active agent”), um composto com capacidade de alterar as propriedades superficiais e na interface de um líquido com um outro meio.
Os biossurfactantes são produzidos por microrganismos como bactérias, fungos e leveduras, e, no caso específico da pesquisa da USP, pela bactéria Pseudomonas aeruginosa. Em relação aos surfactantes sintéticos, os ramnolipídios e outros biossurfactantes têm como vantagens a baixa toxicidade e a biodegradabilidade, juntamente à atividade antimicrobiana, antiadesiva –que dificulta a formação dos biofilmes– e disruptiva do biofilme já formado.
Já a quitosana é um biopolímero obtido da quitina, elemento estrutural na carapaça (exoesqueleto) de crustáceos e insetos. A substância também está presente em fungos e em moluscos, como a lula, fonte da quitosana usada na pesquisa. “A quitosana tem diversas atividades biológicas importantes, como ser antioxidante, anti-inflamatória, anticoagulante, antitumoral e ter atividade antimicrobiana, foco principal do nosso trabalho”, explica Crisiane Marangon, autora da tese de doutorado que produziu e analisou as nanopartículas. O trabalho teve a participação também de grupo de pesquisa em biofilmes da Universidade de Aarhus, na Dinamarca.
As nanopartículas combinando ramnolipídios e quitosana demonstraram desempenho superior na eliminação tanto de bactérias planctônicas quanto de biofilmes. Microrganismos planctônicos são aqueles vivendo livres em suspensão, mas a grande maioria das bactérias vive em comunidades aderidas a superfícies, formando os biofilmes.
“Biofilmes são muito comuns. O lodo no banheiro é um biofilme, o musgo que cobre uma rocha em um rio… A sensação de uma película nos dentes depois de algum tempo sem escovar também é um biofilme. Eles se formam em qualquer superfície úmida e com nutrientes para as bactérias, seja abiótica, como a superfície de um cateter, seja biótica, como o pulmão na fibrose cística”, exemplifica Marangon.
As autoras da pesquisa registram que mais de 60% das infecções microbianas em seres humanos e 80% das infecções hospitalares por dispositivos médicos contaminados têm relação com a formação de biofilmes.
Nos biofilmes, as bactérias produzem uma matriz extracelular que serve de barreira à ação de agentes antimicrobianos. Como a maior parte dos agentes antimicrobianos tem como alvo as bactérias planctônicas, há uma lacuna no combate aos biofilmes. “É urgente o desenvolvimento de estratégias com foco nas estruturas celulares, em substituição aos processos celulares”, afirma Marangon.
“Processos celulares envolvem o metabolismo. A penicilina, por exemplo, atua impedindo a formação de nova parede celular bacteriana, mas a célula precisa estar em crescimento, no estado planctônico. Como nos biofilmes há uma diminuição da taxa metabólica dos microrganismos, são necessárias alternativas que tenham como alvo as estruturas celulares. Um exemplo é a desintegração da matriz extracelular para que os compostos antimicrobianos atinjam a população bacteriana protegida por essa barreira”, explica a pesquisadora.
No caso das nanopartículas de quitosana, a adição do ramnolipídio resultou em partículas menores, mais estáveis e com maior densidade de carga elétrica positiva em sua superfície, o que também favorece a interação com as células bacterianas, carregadas negativamente. Já a quitosana favorece o acúmulo das nanopartículas na superfície do biofilme. No entanto, ela tem dificuldade em penetrar a matriz extracelular até as camadas mais profundas, função que é desempenhada pelo ramnolipídio transportado até ali pela quitosana.
Os resultados já obtidos indicam a possibilidade de aplicações médicas e, também, na indústria alimentícia.
Na área médica, algumas possibilidades são a desinfecção de superfícies de dispositivos como cateteres e próteses e, também, de infecções na pele.
Na indústria alimentícia, biofilmes formados sobre equipamentos são uma importante fonte de contaminação. Os compostos também podem vir a ser usados como aditivos, para controle da contaminação diretamente no alimento.
Os grupos da USP estão dando continuidade às pesquisas na direção dessas aplicações e, também, com outros compostos bioativos que possam abranger outros tipos de bactérias.
Fonte: Folha Uol 21.03.2020
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